25.8.09

Tábula Rasa ou O Fim do “Como Assim, Ele É Gay?”

Acabo de formular uma teoria curiosa que talvez já tenha sido abordada por outros, e que tem um forte potencial para revolucionar as relações humanas. A ideia básica, bem simples, pode ser resumida numa frase: o preconceito com base em orientações sexuais só poderá ser combatido de fato quando não imperar mais o pressuposto de que “todos são heterossexuais até prova em contrário”.

O conceito básico poderia na verdade ser expandido para todos os tipos de preconceito, ainda mais no mundo virtual de hoje (afinal, é impossível inferir de maneira precisa o gênero, etnia, idade, credo, status social, filiação política ou condições de saúde de quem está do outro lado da janelinha do MSN). Foco na orientação sexual por me parecer uma característica muito mais difícil de se identificar, uma vez que se aprenda a esquecer os estereótipos do cabeleireiro e da caminhoneira.

Não é preciso ser formado em Psicologia para ter noção da amplitude do espectro de relações humanas, sejam elas concretizadas ou apenas inconscientemente desejadas. Por questões históricas, sociais e até biológicas, partimos do princípio de que todos são heterossexuais exceto se os próprios declararem, por palavras ou atos, que não o são. O que acaba sendo um tiro coletivo no pé, pois a verdade é que mesmo uma boa parte dos que se autodeclaram héteros muito possivelmente não o são - seja por reprimirem todo e qualquer impulso homoerótico/homoafetivo, seja por considerarem que a conferida na bunda do colega de vestiário ou o selinho na amiga modernosa não pesam na soma total de seus relacionamentos e expressões de afeto romântico.

O fato é que, se quiséssemos ser realmente justos conosco e com os que estão ao nosso redor, a questão da orientação sexual deveria ser sumariamente ignorada num primeiro momento; isto é, deveríamos partir do princípio de que “todos são assexuados até prova em contrário” – ou ao menos, para restar alguma esperança naquelas situações em que o objetivo principal é encontrar um parceiro, bissexuais até prova em contrário.

Partindo-se da assexualidade (ou da bissexualidade), as expectativas, se não eliminadas, são no mínimo severamente reduzidas. E sem expectativa não há o choque de se ter uma expectativa frustrada. A sexualidade alheia só incomoda quando existe – ou, melhor dizendo, quando existe e não é o que nós havíamos definido nos primeiros minutos de conversa.

Se víssemos todos os estranhos como seres sem sexo, tanto faria descobrir que eles são gay, bi ou hétero (aliás, descobriríamos que alguém é hétero, o que por si só é uma revolução). Uma mudança desse tipo no nosso comportamento afetaria até mesmo as relações entre homens e mulheres: no fim das contas, nós só conseguiremos nos ver como iguais de fato no dia em que tirarmos nossas genitálias do caminho.




O post de hoje vem com um dia de atraso porque, com o curso de tradução, o curso de espanhol, vários trabalhos de grande porte, casamento do primo em Salvador mês que vem e mais a reestruturação do fórum de RPG, eu... tá, mentira. Atrasei porque passei o sábado todo jogando The Sims 3. E aquele que nunca procrastinou que atire a primeira pedra.

16.8.09

II. Aurora.

Aqueles que não tiverem sido direcionados do link que eu postei ainda agora no fórum podem estranhar essa atualização. Ela é, em parte, uma piada interna - uma historinha que só deve fazer sentido a quem conhece os personagens e o ambiente citados. Se for este o seu caso, espero que não sinta que perdeu a viagem ao conferir meu blog hoje. Quem sabe? Pode ser que o post tenha algum mérito de entretenimento por si só.

Aos que vem do RPG Beauxbatons, o aviso é especial.

Talvez vocês tenham notado que a numeração dos posts da Cécile pulava do “I. Panta rhei” pro “III. Omnia Vanitas”. Não foi um erro de digitação ou de conta: o post II esteve nos meus planos esse tempo todo, desde a abertura do fórum há cinco meses. Inclusive a interação com a Lily foi feita na época, e estava até hoje guardada num .doc aqui na pasta “Cécile”. Com o corre-corre da abertura e da Semana de Moda (sem contar, é claro, a Vida Real se metendo onde não deve XD), fomos adiando e adiando; e depois da última virada de calendário, com o relacionamento dos dois “saindo do armário”, pensamos mesmo em desistir de vez de postar. Tinha perdido o timing...

Mas a vontade de fazer esse post era tanta que agora, com o fim da temporada, não resisti mais e ataquei nosso diálogo com tudo, decidida a resolver esse karma. Agora, vendo o produto final, sinto que a situação acaba servindo de metáfora pro fórum todo. Fechamos uma temporada – que venha a nova fase.



[Data em ON: 29/08/2017, terça-feira, véspera da Semana de Moda e dia seguinte à chegada do Vincent em Village des Cygnes.]


II. Aurora.

O amanhecer na minha janela me satisfaz mais que a metafísica dos livros.
Walt Whitman



Àquela hora, as estrelas e a fatia prateada de lua no céu eram as únicas fontes de iluminação sobre os vastos descampados que circundavam o castelo da Academia. Na escuridão da noite, Cécile distinguia muito mal o caminho de terra batida que saía do edifício e espalhava-se pelo terreno, feito tentáculos recortados na grama. O silêncio agora – ela e Vincent não falavam mais – era perturbado apenas por sons distantes de insetos e pelo atrito dos pneus da bicicleta na pista de terra.

Parou por um segundo para definir o que sentia naquele instante. Um passatempo antigo de garota ao qual ela não se permitia entregar desde que começara a viver sozinha, mas agora parecia um bom momento para relembrar.

Havia um quê de nostalgia naquela aventura noturna. Mesmo tendo sido estudantes dedicados e sem nenhuma grande paixão por infringir regras, tanto Vincent como ela tiveram seus arroubos de rebeldia adolescente; e se ela gostava de correr até as bordas da Floresta Velha e se deitar na grama úmida de orvalho, ele por sua vez também dera escapadas para namorar o céu estrelado e sonhar com maneiras de conciliar ciência e magia. Agora, há muito formados, o prazer transgressor persistia mesmo sem a ameaça de detenção.

Abaixo desse sentimento, havia também uma fina camada de apreensão. Não se viam há tanto tempo... não eram mais os mesmos. Subitamente, percebeu-se sozinha com um estranho num lugar ermo e escuro – e imediatamente teve raiva de si por chegar mesmo a conceber aquela linha de raciocínio. Diferente ou não, Vincent era Vincent; se algum dia ela chegasse ao ponto de temê-lo, no mesmo dia quitaria suas dívidas com o Universo e faria as malas.

No fim das contas, como boa cientista, o que dominava suas emoções era a curiosidade, que só fez aumentar quando ele enfim freou a bicicleta. — Certo... Acho que é aqui — declarou. Ela pensou em lembrá-lo que “aqui” era um campo deserto, mas olhando ao redor com mais atenção, notou uma espécie de poste próximo a eles, junto ao caminho de terra. À frente, o breu da noite era cortado por pequenos pontos de luz que subiam desordenadamente, evidenciando que ali havia uma colina – no topo da qual teve a impressão de ver uma aura dourada. — Bem, eu achei justo que você viesse conferir comigo como ficou a ala.

Então era aquela a surpresa. Cécile não pôde deixar de sorrir; a ideia lhe parecia tipicamente bouchardiana. — Aí em cima, é? — indicou a colina com o queixo. — Então melhor você subir na frente. Que eu conheço você, e se tiverem feito alguma coisa diferente do que você queria, você vai ter ataques.

— ... Inferno, faz sentido. — Ela sabia bem das manias de perfeição do amigo, e duvidava que nos últimos dez anos ele tivesse mudado tanto assim. Tendo os dois saltado, Vincent acorrentou a bicicleta ao poste – uma placa, na verdade – e pegou a sacola do café da manhã, que passara a viagem pendurada no guidão. — Tecnicamente, aqui já começa a ala. E isso vai ficar mais bonito quando estivermos pelo fim do bimestre. — Seguindo à frente da meio-veela, ele indicou os pontos de luz branca que contornavam a subida da colina, no que só agora Céci identificava como a forma vaga de uma espiral até o topo.

— Tava vendo que aqui já tinha coisa. Estrelas! Só você, mesmo... e o que acontece no fim do bimestre? — Ele galgava o caminho a passos largos, disposto a chegar bem antes dela, mas mantinha-se próximo o bastante para manter a conversa. Depois de alguns segundos de mistério, ele explicou sem grandes detalhes que a intensidade das luzes refletiria o desempenho escolar dos alunos. Pareceu surpreso com a risada da mulher. — A gente tinha que ter alguma coisa em comum...

Estancou por um instante, voltando-se para ela com uma expressão intrigada no rosto. — Ah, espera aí. O que é que você arrumou?

— Velas.

— Hah! Depois eu vou querer ver isso... — Ele retomou o ritmo da caminhada. Estava próximo do topo, agora, e seguiu até lá sem falar mais; quando parou em definitivo, mesmo à distância Cécile pôde notar seus ombros relaxando.

— Tudo certo aí? Espero que esteja, porque se você me mandar voltar agora eu juro que te quebro, Bouchard.

Ele deu uma sonora risada. — Vai sonhando. E pode vir!

Ainda faltavam algumas passadas para o fim do caminho quando o topo da colina se alinhou ao seu campo visual. Num primeiro momento, apesar da iluminação ambarina que irradiava de um ponto ao centro, ela não notou nada de extraordinário – de fato, havia apenas uma mesa e uma cadeira sobre o platô circular. Foi apenas ao pisar no topo, olhando do alto de seu metro e 75 para o espaço da ala, que ela compreendeu do que se tratava. Teve de dar o braço a torcer – Vincent havia se superado desta vez.

— ... E aquela ali é minha mesa, ó. — Ele disse como um menino orgulhoso de sua coleção de botões, sem dúvida notando que Céci olhava boquiaberta para o mosaico do Sistema Solar.

Piscando os olhos para voltar à realidade, ela olhou para onde ele apontara. A mesinha de tampo redondo ficava bem no centro, cobrindo parcialmente o círculo iluminado que banhava o ambiente num amarelo cálido. — Ahh, seu egocêntrico, bem no meio do Sol...

— Bem, eu tenho que ser o centro das atenções aqui, não é?

Ela dividia sua atenção entre a conversa e as imagens desenhadas com pedras, parando em cada planeta para identificar o material utilizado. Decidiu que nutria uma paixão especial pelos anéis arenosos de Saturno, nos quais brincou com a ponta dos pés (nem se lembrava direito de ter tirado os sapatos ao chegar). — Claro. E os moleques vão ficar pelo chão mesmo? Não, porque pelamordedeus, você não vai estragar esse lugar com cadeiras...

— Pra arranharem isso tudo aqui? Jamais. Coloquei almofadas na lista de material. — A voz dele ameaçava um tom indignado, como se fosse uma grande ousadia de Céci sequer insinuar que ele não tivesse pensado em tudo.

— Bom. Só que... não pense que eu estou subestimando sua retórica, mas... eles vão dormir, meu querido.

— Tudo bem. Eu chuto. — Ela gargalhou alto como não fazia há muito tempo. As cartas de Vincent quase sempre continham alguma pérola que a divertia, mas nada se comparava à espontaneidade de ouvi-las em pessoa. Satisfeito com a reação da meio-veela, ele se acomodou na cadeira giratória – uma excentricidade deslocada do resto do ambiente. — Quer sentar um pouco? Não tem uma cadeira extra, mas a mesa te aguenta.

Seguiu a sugestão dele, embora agora fosse a sua voz que carregasse um tom caricato de indignação. — Isso foi você indiretamente me chamando de esquelética, não foi? — Cruzando as pernas em posição de ioga sobre o tampo da mesa, Cécile apanhou a sacola que Vincent largara ali e buscou dentro dela uma das maçãs. Tirou também a Tupperware com os minissanduíches feitos às pressas antes de saírem de casa, abrindo a tampa e oferecendo-os ao amigo.

— Foi. Agora fica quieta e come, que daqui a pouco começa. — Ela demorou um tempo olhando para ele, tentando entender. O que começava dali a pouco? Estavam no meio do nada numa zona de interferência mágica, não é como se ele pudesse passar um filme por ali. Até pensou que a surpresa poderia ser essa – a solução do problema dos aparatos eletrônicos em Village – mas mesmo assim, não havia nada ali que pudesse lembrar vagamente um projetor...

Então, num estalo, ela se deu conta do que ele queria dizer. — Ah—onde é que—

O sorriso de Vincent derramava vitória quando ele, sem maiores explicações, girou a cadeira até um determinado ponto e fixou os olhos no horizonte, onde o céu começava muito discretamente a mudar de cor.

Ela realmente amava aquele cretino.

Não se falaram mais durante um longo tempo, suas atenções voltadas para a gradual paleta de cores que avançava pela abóbada celeste, o véu púrpura da noite encharcando-se pouco a pouco em tons de vermelho. A aurora: a esperança que sempre renasce por mais longas que as trevas tenham sido. Cécile sentiu os olhos encherem d’água. Quando fora a última vez que ela vira o nascer do sol? As decepções e a rotina haviam-na endurecido, a ponto de não se lembrar mais de fazer as coisas de que mais precisava, e mesmo que a levaram a escolher os rumos de sua carreira. Não era à toa que volta e meia esquecia de regar as plantas ou dar uma alface à pobre Mzee – ela andava rejeitando o amparo que o mundo natural sempre lhe ofertara, numa espécie de autossabotagem.

Estava devendo um agradecimento. — ... Vincent? — falou quase num sussurro, tentando não perturbar a paz daquele instante. — Você é um filho-da-mãe desgraçado.

— Também amo você, Cécile — ele respondeu com um riso soprado pelo nariz, os olhos ainda voltados para o globo laranja que despontava no horizonte. (Derrotado, o Sol de âmbar do mosaico se apagou.)

— Sério, olha isso! — Ela fez um gesto largo com os braços, abrangendo toda a área verde ao redor, a silhueta dos picos ao longe e o céu. — Eu vou ficar de bom humor pelo resto da semana. E olha que esse começo costuma ser um inferno, mas ainda assim. Você consegue proezas.

Era verdade que o mundo todo estava em tons de vermelho, mas ela podia jurar que Vincent ficara com as bochechas coradas com tanta bajulação. — Eu vou lembrar desse bom humor quando acumular louça na pia. — retorquiu ele, não pela primeira vez usando de ironia para se manter por cima.

Cécile concluiu de repente que aquele lugar era um belo cenário para sexo, e o pensamento fez com que ela se sentisse desconfortável. Decidiu não fazer comentários a respeito; não sabia a que pé estariam os tabus entre os dois, depois de todo aquele tempo longe do convívio diário. Olhos voltados para o céu, procurou algo menos polêmico para falar. — Sabe que eu vou querer assistir sua estreia aqui, né?

— ... Hm. — Ele coçou o queixo, como se realmente estivesse avaliando a hipótese. — Tudo bem. Tá convidada.

— Se não convidasse, eu invadia! Fazia seus alunos de refém e tudo... — Riram da ideia juntos. — ... E aí. Nervoso?

Vincent considerou a questão por um breve momento, até que deu de ombros. — Engraçado. Sabe que não? Acho que é porque nunca pensei em dar aulas. Não é como se eu tivesse chegado aqui cheio de expectativas... O que vier, vale.

Recordando-se de sua própria experiência com o começo do magistério, Céci não pôde deixar de sentir uma pontada de inveja da absoluta tranquilidade do amigo. — Faz sentido. Mesmo depois de um ano inteiro de treinamento, eu tive uma crise de nervos na véspera da minha primeira aula. Mas claro, eu já pensava em fazer isso da minha vida desde os tempos que a gente estudava aqui. Se além de todo o resto fracassasse também na carreira, me jogava no Sena. — Não viu necessidade de acrescentar que até flertara com pensamentos suicidas algumas vezes, quando a vida se mostrara particularmente amarga. Se soubesse, Vincent provavelmente ralharia com ela por honrar tanto a melancolia típica de seu antigo albergue.

— Bem, as coisas deram bastante certo, não? Ao menos você já angariou moral suficiente até pra me trazer pra cá. — disse ele, entre uma dentada e outra num minissanduíche.

— Seu currículo ajudou um pouquinho.

— Aquele que menciona o Observatório de Paris? Meu atestado de insanidade?

— Sim, aquele que menciona o Observatório de Paris. Acho que a lógica foi que se você é maluco a esse ponto, é maluco o bastante pra dar aula em Beauxbatons. — E ela não estava mentindo. Era verdade que não houvera concorrentes para a vaga de professor de Astronomia, ainda mais considerando a urgência da administração da escola, mas o consenso geral entre o corpo docente fora de que o histórico acadêmico e profissional de Vincent era admirável, ainda que um tanto quanto excêntrico.

Deixando a conversa de lado, Cécile voltou os olhos para o espetáculo celeste, sentindo a vista queimar com o gradual excesso de luz. — Tá acabando. — Ele não chegou a falar nada, apenas meneando a cabeça em confirmação. Ao redor deles, as cores e sons da manhã substituíam o silêncio escuro da noite; um pássaro cantou ao longe, e Cécile tentou identificá-lo – seria um melro? – mas não conseguiu. Deu-se conta de como se desligara do movimento do mundo; deixara o ceticismo da vida adulta controlar sua sensibilidade como um rio represado. Já perdera tempo demais assim.

Precisava mudar, deixar de lado aquele desencanto generalizado. O mundo, afinal, não ajustaria suas rotas por ela. Distraída pelas tarefas comuns do presente, ela jogara passado e futuro para baixo do tapete; foi preciso que Vincent voltasse à sua vida para que ela finalmente acordasse do torpor.

A intensidade do sol forçou-a a desviar o rosto, por fim. Piscou os olhos algumas vezes, tentando fazer com que as moscas volantes sumissem, sem sucesso. Vincent continuou a mirar um ponto distante do céu até que sentiu a mão dela bagunçar seus cabelos. — 'Brigada por ter vindo pra cá, viu.

Ele sorriu, voltando-se para ela e dando de ombros. — Tava na hora de retribuir o favor, né?

Cécile riu e empurrou a cabeça dele, de brincadeira. Parou novamente para pensar no que estava sentindo. Começava um novo dia; talvez também fosse chegada a hora de uma nova fase de sua vida começar.

10.8.09

Dois centavos sobre política

Uma coisa é certa: eu não gosto de falar de política. Não gosto. Sempre fico achando que tudo que eu disser sobre o assunto vai ser um monte de tolices ingênuas/utópicas/perigosamente esquerdistas/perigosamente direitistas. Aliás, logo de cara já aviso que pra mim todas as filiações políticas se resumem a seres humanos batendo cabeça das formas mais complicadas possíveis. Iguais em princípios, mais iguais ainda em fins (se esses fins seriam “a felicidade geral da nação” ou “nossos bolsos cheios e longe da mão dessa gentalha”, aí depende do momento e do lugar).

Agora, quando toda a imprensa e a sociedade culta se juntam pra defender uma mesma ideia, aí eu não posso deixar de ficar com a pulga atrás da orelha. Ou vai dizer que você também não tá achando esquisita toda essa comoção em torno do Senado?

Afinal, que aquilo lá sempre esteve cheio de gente corrupta, até o seu Manoel da padaria sabe. E digo isso sem pensar em nenhuma figura política específica entre saneys, collors e renans; não é só o Senado que é um ninho de cobras. Eu sei. Você sabe. E por mais que a gente procure não escolher em quem votar na base do uni-duni-tê, acho que ninguém, pelo menos ninguém da minha geração, tem a menor esperança de mudar essa situação indo às urnas.

Não sou do tipo que fica conjeturando que “oh, a mídia e os grandes estão tentando sabotar a candidatura da Dilma!” porque, sinceramente?, como escritora e leitora, esse tipo de enredo é chato demais pra prender minha atenção. Prefiro pensar em teorias da conspiração mais inspiradoras, do tipo grupos de poderosos fazendo os palhaços cantarem #fechasenado para pouco a pouco se instaurar uma ditadura ainda mais sanguinolenta que a de 64. Mas suspeito que a política brasileira não seja interessante o bastante pra render um bom roteiro de ação.

Além disso, estamos todos cometendo um erro imbecil. Culpar o Senado pelo que fazem os senadores é o mesmo que culpar o cristianismo pelo que fazem os cristãos (substitua pela religião de sua preferência – tal como os partidos, elas também se resumem a um bando de gente batendo cabeça). O Senado em si não é uma instituição boa nem ruim; bom ou ruim é o que fazem com ela.

E no fim das contas, não adianta fechar o Senado. Isso até poderia (e ainda assim duvido) jogar a crise política atual pra baixo do tapete, mas você continuaria tendo deputados, vereadores, prefeitos e governadores corruptos. E médicos, advogados, motoristas de táxi e vendedores de cachorro-quente corruptos.

O buraco é muito mais embaixo.

3.8.09

Gesso

Esta semana, como vocês podem notar na barra de endereços, comprei um domínio próprio. Ainda estou aprendendo a lidar com IPs e DNS, mas estamos nos entendendo. Por ora continuo no Blogger, que educadamente redireciona quem chega pelo endereço antigo do Blogspot; mas agradeço aos que se dispuserem a atualizar seus links e favoritos (hah, alguém favoritou esse blog?), porque convenhamos – www.alinebrandao.com.br é bem mais bonitinho.

Pretendia terminar um conto inédito para o post de hoje, mas o trabalho (e a procrastinação, confesso) interferiram. Pra não dizer que não falei das flores, então, segue aí um momento Túnel do Tempo – um textinho de 2006, do qual ainda gosto muito.




Gesso


Uma sinuosa coluna de grafite surge no papel.

E assim nasce você, minha Galateia.

A insegurança me vem - desconfio que o ângulo não esteja bem certo, que as curvas não façam jus à realidade; e haveria como fazer jus à sua realidade, musa? Pergunto em silêncio, enquanto estico o lápis como régua à minha frente.

Você nem pisca.

Nem se abala, enquanto analiso suas proporções divinas, perfeitas: o corpo elegante, alongado mas encorpado, a forma suave dos seios, o ligeiro quebrar dos quadris; os pés mais bem-feitos que um ser humano poderia ter (e eu sempre odiei pés), os cabelos emoldurando a pele alvíssima, os dedos longos.

Mas não há tempo para me distrair, embora eu tenha a estranha certeza de que seres como você jamais se cansam. Sem que meu pensamento a seguisse, minha mão traçou de memória um rápido esboço do seu esqueleto (sim, garanto que até mesmo seus ossos são mais galantes do que os de meros mortais como eu).

Arranco a folha, amasso o papel e praguejo. Alguns olhares se voltam para mim, mas não o seu. Jamais o seu.

Ah, a angústia do artista! Às vezes me pergunto, musa, se não estou fazendo tudo errado; se não tenho talento algum para isso, e na verdade estou apenas me iludindo em pensar que um dia hei de ser digno de você. Se não seria mais fácil, mais prático, mais normal esperar você na porta do estúdio e tentar puxar conversa.

Pois a verdade é essa, minha amada Galateia (e enquanto medito inicio novamente o traçado de sua esguia e linda silhueta): eu desejo mais. Eu estou cansado de vir aqui todas as tardes para vê-la nua; por mais sedutora que você se mostre, não posso (não consigo, nem quero) extrair destes encontros qualquer prazer além do artístico. Você não é minha nesta sala iluminada e asséptica, musa; aqui você é de todos nós, e no entanto ninguém pode tê-la. Ninguém (nem mesmo o cavanhaque da esquerda, que - dizem - já ganhou três prêmios regionais) é capaz de quebrar este casulo de gesso em que você se encerra ao deixar cair o roupão.

A adolescente perto da porta suspira resignada, atacando furiosamente a folha com a borracha. Quanto a mim (e você certamente nem se dá conta disso), já me entrego à agradável tarefa de reproduzir seus volumes com o lápis macio. Aguarde só mais um minuto, musa... pronto. Acho que não há mais o que fazer. No papel há uma jovem belíssima, tal e qual as deusas gregas; e no entanto a graciosidade dela não chega aos pés da sua...

Meu olhar atinge o relógio de relance; o tempo acabou. Você relaxa e se humaniza - alguém reclama, mas ninguém dá ouvidos. Ponho-me a recolher meu material, guardando na pasta a versão de musa com que terei de me contentar, e é quando sinto seu rosto de anjo se voltar para mim e enviar-me um breve sorriso. O peito leve e a alma formigando, me vem a lembrança que me impulsiona a chegar mais perto. Na história, Pigmaleão tem um final feliz.