13.5.06

Desafio XI

"Enquanto existir um homem vai existir um puteiro." Era com essa frase que Eliseu Gomes Carvalho, o Gomes, declarava terminadas as noites nas Termas de Afrodite, pequeno estabelecimento de moral duvidosa na periferia da cidade. Naquela sexta-feira 13 de maio, no entanto, a rotina do bordel seria bruscamente alterada.

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12.5.06

Luz

Os olhares se encontraram; ele logo desviou o rosto, encabulado. Era sua primeira vez ali, primeira vez naquele mundo. Não que desconhecesse aquelas artes, muito já havia visto, ouvido e praticado nos círculos do colegial. Entretanto, jamais esperara um vôo tão distante dos planos familiares, e estranhava estar cercado de tantos tão obviamente mais vividos do que ele.

Como ela. Quer dizer, não sabia ao certo há quanto tempo ela estava no ramo - parecia jovem, mas daí todos ao redor imbuíam-se de pretensa jovialidade. De qualquer forma, experiência não se fazia no calendário simplesmente, e jovem que fosse, ela não demonstrava qualquer nervosismo. Intimamente, ele se perguntava se a falta de emoções vinha da habilidade de escondê-las ou da rotineiridade da cena.

Das duas uma: ali, sentada à sua frente e resignada em acompanhá-lo, estava uma excelente atriz - e o pensamento o atormentava um tanto, fazendo-o encolher os ombros em sinal de humildade. Mas oras, fosse mesmo tudo isso, ela não estaria ali, dando um punhado de luz à existência de um ninguém como ele, estaria? Não entendia muito bem a lógica daquele processo; recolheu-se à sua insignificância, pois era o melhor que sabia fazer.

Pôs-se a observar o restante da sala, os olhos fugindo como podiam da bela figura. Claro, o lugar encontrava-se apinhado de outras moças de beleza equiparável ou até superior à dela, que andavam de um lado a outro, gargalhando e fazendo gracejos para os cavalheiros ao seu redor. Riu-se em silêncio da mordaz ironia do Destino, que, dentre tantas senhoritas alegres e extrovertidas, foi escolher justamente aquela soturna e entediada demoiselle para seu par.

Conferiu mais uma vez o bulbo vermelho acima da porta; flamejava sem qualquer consideração por sua ansiedade. Apertou as próprias mãos, já excessivamente suadas, e pensou em tentar iniciar uma conversa amena com a companheira. Atreveu-se a contemplá-la, enquanto ela sugava placidamente o cigarro barato. Recebeu um levantar de sobrancelha e um sorriso, gestos pequenos que se por um lado o animavam por outro deixavam-no ainda mais paralisado. Ponderou se ainda estava em tempo de fugir, mas desistiu; recusava-se a admitir que ainda lhe faltassem os brios de homem qualificado.

A luz rubra continuava a brilhar alegremente enquanto ele corria os olhos pelo recinto ainda mais uma vez. Reparou como os outros rapazes travavam despreocupados colóquios com as garotas, alguns mesmos já ensaiando o que pretendiam apresentar a portas fechadas. Decidiu que aquela era a atitute que também deveria tomar, adiantar-se a conhecer sua misteriosa parceira de forma a aproveitar ao máximo o pouco tempo que lhes seria permitido (mas afinal de contas, não parecia que aquele outro casal estava há eras protegido pela iluminação cor-de-sangue?). Voltou-se para ela com a bravura renovada: faltaram-lhe as palavras. O cérebro absolutamente em branco.

Secou o suor da testa com as costas da mão; a moça, ele já notara, escondia um sorrisinho sarcástico por trás da nicotina. Pois justo então, no ápice de sua angústia, a cretina da lâmpada finalmente se apagara, e os dois enclausurados abriram caminho entre os demais - ele radiante, ela um tanto desgostosa.

Sobressaltou-se ao ouvir novamente a voz rouca e charmosa, depois de horas (ou teriam sido apenas alguns minutos?) de espera, dizendo-lhe "Vamos?" num sussurro pouco interessado. Ela descruzou as pernas, esmagou a guimba de cigarro com a ponta da sandália e se levantou; já de pé, estendeu-lhe a mão como o bom cavalheiro que ele era deveria ter feito. Pois foi então, olhando para ela, que ele se convenceu de que tudo daria certo - as falas que ele repetira milhões de vezes para si mesmo não serviriam de nada, o que importava é que ambos, ele e ela, conheciam bem demais os papéis que ali representavam, e no fim das contas aquela tão nobre arte lhe corria como sangue pelas veias; aquilo era por ele, para ele, seria ele mesmo e que o resto se danasse. Apertou a mão estendida e praticamente arrastou a moça, a passos rápidos, para o retângulo de luz amarela que os holofotes faziam surgir no vão da pesada porta de feltro cinza. Antes que se fizesse ouvir o grito de "gravando", os dois se fecharam para a balbúrdia do lado de fora, e a luz vermelha mais uma vez se acendeu.

11.5.06

Roca

Eu não sou filha de rei nem tenho madrasta má nem maldição nem porra nenhuma. Eu sou só uma garota idiota mimada e ridícula. A culpa é toda deles eles que me criaram errada toda errada. Meu pai minha mãe as dindas. Todos eles me mimando me superprotegendo me tratando feito princesinha. Olha que bonitinha ela que bonitinho o que ela fez. Aí não filhinha vai machucar a mãozinha. Sempre mantendo todos os riscos longe de mim porque eu era a idiota mesmo não ia saber me cuidar. Eu odeio todos eles.

Eu não sou nada daquilo que eles ficam falando. Que lindinha puxa que moça bonita você está ficando Aurora. Quanto tempo cada vez que te vejo está mais linda. Porra nenhuma. Eu sou uma ridícula idiota feia muito feia. Eles acham que eu sou idiota a ponto de acreditar nas babaquices que eles falam pra tentar me enganar com o continho de fadas deles mas não. Eu sei que é mentira. Tudo mentira. Eu não tenho nada de lindinha esse cabelinho loiro liso só serve pra esconder a podridão que eu tenho por dentro e que eles não enxergam ou se enxergam fazem de conta que não existe. Eu sou horrível.

Eu odeio todos eles. Menos a minha tia. A minha tia também é podre por dentro mas ela sabe disso. Ela sabe como é que é ela me entende. Quando eu era pequena a gente não se via muito porque ela nunca gostou mesmo de criança no que faz muito bem porque criança é uma merda mesmo. Mas quando eu comecei a ganhar peito ela foi a única que não achou bonitinho a Aurora ficando mocinha. Ela riu e disse que tinha pena de mim porque crescer era uma merda porque a gente sai daquele mundinho cor-de-rosa da infância e logo logo não ia ter papai e mamãe pra manter aquela mentira cor-de-rosa em volta de mim. Eu odeio cor-de-rosa.

Eu não gostava muito da minha tia mas gostava mais dela que da minha mãe e de todos os outros. Ela não ficava tentando esconder a podridão de mim não fazia a menor força pra manter aquela farsa ridícula de almoço de domingo e festinha de aniversário e vamos arrumar um namoradinho pra Aurora. Ela me deixava fumar e me cortar e dizia que se eu me achava feia é porque devia ser mesmo por dentro que é o que importa. E dizia que eu é que tava certa porque nós somos todos horrorosos por dentro. Eu sempre fui mesmo podre por dentro então eu achava muito sábio aquilo que ela dizia.

Eu continuava tendo que aturar aquela gente imbecil com historinha de que eu era uma moça muito bonita e devia me cuidar mais devia parar de fumar. Quando eles descobriram as cicatrizes no meu braço foi uma merda me levaram no psicólogo o caralho. Minha mãe deu um jeito de sumir com tudo que era faca gilete até folha de papel ela passou a vigiar. Minha mãe era uma neurótica mesmo ela realmente acreditava que era uma princesinha mas era tão podre quanto eu. A diferença é que eu sei como eu não presto. A Dinda Flora veio me dizer que achava aquilo um absurdo que uma menina tão linda não podia ficar se estragando daquele jeito. Eu queria mais que a Dinda Flora se fodesse.

Eu fiquei muito puta com isso. Eles tiraram tudo de mim eu já era uma inútil eles ainda tiraram a única coisa que eu sabia fazer. Filhos da puta podiam ter me trancado num hospício de vez eu preferia. Mas a minha tia me entendia. Ela dividia a podridão dela comigo e deixava eu mostrar a minha. Foi aí que ela começou a deixar as seringas pra mim. Ela me perguntou se eu sabia pegar veia uma vez. Eu disse que não eu não sabia fazer nada que prestasse. Ela me levou pro sótão ninguém nunca mexia no sótão mesmo e me mostrou como se fazia. E aí ela passou a deixar uma seringa prontinha pra mim toda semana no sótão. Ela sempre deixava as seringas com só um pouquinho mas já bastava. Eu injetava aquele pouquinho e via coisas muito lindas contos de fadas de verdade. Eu me via morta muito linda e calma no meu caixão sem podridão nenhuma só um corpo lindo e puro que deixava os homens todos loucos de tesão em ver aquele cadaverzinho lindo e sereno. Os outros meu pai minha mãe as dindas começaram a reclamar que eu andava esquisita desligada passava mal e sumia toda hora. Eles finalmente tavam vendo que eu era podre.

Eu fazia isso todo fim-de-semana e ela sempre deixava só um pouquinho na seringa. Só que aí um dia eu cheguei no sótão e a seringa tava cheia cheinha até em cima era até difícil segurar e apertar o negocinho atrás. Eu achei esquisito porque só um pouquinho já me deixava me ver linda de verdade. Então eu pensei a minha tia me entende e via que como eu era muito podre muito mais podre que o resto eu precisava de muito muito mesmo pra ser a princesa morta linda que eu via. Então eu injetei tudo. Então eu apaguei.


Eu acordei no hospital. Meu primo tava comigo. Ele não era filho da minha tia ela nunca teve filhos ele era de outra parte da família era meio distante. Ele era bem mais velho do que eu quando eu nasci ele já devia bater punheta vendo sacanagem por aí. Eu gostava desse meu primo porque ele fumava também e tinha barba e não ligava pro fato de ser podre. Eu acordei e perguntei onde eu tava. Tu é muito burra viu garota ele disse. Eu perguntei onde tava minha tia. Ele disse que ela morreu. Eu disse que ele tava mentindo que era outro filho da puta mentiroso igualzinho aos outros. Ele disse que ela era uma maluca e nem sabia se picar direito aquela vaca. Eu chorei. Eu queria quebrar a cara dele. Mas ele não fez nada nem riu. Ele pegou uma caixinha no bolso da calça abriu pegou uma bolinha e pôs na boca. Então ele me beijou e empurrou a bolinha com a língua pela minha goela abaixo e disse você é louca mas é linda e foi embora.

Eu fechei os olhos. Eu era linda.

4.5.06

Essa conversa tá me dando fome

(Ontem à noite, Saenz Peña.)

- Eu tô desde hoje de manhã com Auf Asche na cabeça.

- E os dois hambúrgueres?

- ... Sei lá. Devem estar nas orelhas.

- Eu não quero nem imaginar onde está o molho especial...