15.5.07

Curriculum Vitae

Mens sana in corpore sano, dizem. Ela não sabe a relação entre aquele começo de gripe e o fato de enxergar um grande par de asas translúcidas nas costas da menina do Financeiro. Provavelmente não há relação nenhuma, mas a frase apareceu desenhada numa placa de mármore em seus pensamentos. A placa, aliás, fica bem na entrada do templo grego onde ela é sacerdotisa quando não está elaborando uma resposta sintética o bastante para o cliente chato que insiste em apontar um erro inexistente no sistema de cadastro.

Se o telefone toca (ah, o trinado do demônio), ela é forçada a abandonar a ilha paradisíaca onde guia lábios, braços e pernas estranhos na dança úmida e ancestral dos amantes; no mundo das mesas de metal e aglomerado bege, ela sorri e finge conferir e-mails quando na verdade está assistindo às ninfas que dançam em suas túnicas de fumaça branca num não-lugar anti-gravitacional e “inexistente” (entre aspas porque todos os não-lugares existem nos mapas-múndi cor de sépia de sua mente).

Do alto de seu esconderijo invisível, ela observa o comportamento trivial dos outros e se pergunta se eles também conhecem os anjos e as putas e as notas musicais. Quando ela aguarda por um milagre sobre uma pilha de lenha da Inquisição Espanhola, onde estariam eles, que se disfarçam com gravatas e crachás? (Ela teme que os universos se cruzem, um dia, e ela esbarre com o chefe em uma orgia persa, enquanto se lambuza de sêmen e chocolate importado dos incas por um Marco Polo moreno e seminu.)

Ela transfere ligações, confere dados, carimba documentos e prepara planilhas. Ninguém no escritório sabe que na noite anterior ela dançou tango com um chileno anônimo numa rua de Stratford-upon-Avon; nem que ela já foi uma sereia; nem que, quando criança, ela passava os dias desenhando gavetas num navio de mercadores; nem que ela matou o próprio filho em 14 versos numa noite chuvosa; nem que ela esconde um arquivo confidencial do FBI na gaveta de calcinhas; nem que ela teve um grande amor e ele tinha asas nos pés.

E essa é a melhor parte do trabalho.

Um comentário:

Rodrigo disse...

Olá.

Nos minutos necessários para saborear esse conto, você redimir o trabalho de escritório e dar-lhe uma dimensão digna de um Alan Moore. Congratulações.

Um abraço,
Rodrigo.