12.5.06

Luz

Os olhares se encontraram; ele logo desviou o rosto, encabulado. Era sua primeira vez ali, primeira vez naquele mundo. Não que desconhecesse aquelas artes, muito já havia visto, ouvido e praticado nos círculos do colegial. Entretanto, jamais esperara um vôo tão distante dos planos familiares, e estranhava estar cercado de tantos tão obviamente mais vividos do que ele.

Como ela. Quer dizer, não sabia ao certo há quanto tempo ela estava no ramo - parecia jovem, mas daí todos ao redor imbuíam-se de pretensa jovialidade. De qualquer forma, experiência não se fazia no calendário simplesmente, e jovem que fosse, ela não demonstrava qualquer nervosismo. Intimamente, ele se perguntava se a falta de emoções vinha da habilidade de escondê-las ou da rotineiridade da cena.

Das duas uma: ali, sentada à sua frente e resignada em acompanhá-lo, estava uma excelente atriz - e o pensamento o atormentava um tanto, fazendo-o encolher os ombros em sinal de humildade. Mas oras, fosse mesmo tudo isso, ela não estaria ali, dando um punhado de luz à existência de um ninguém como ele, estaria? Não entendia muito bem a lógica daquele processo; recolheu-se à sua insignificância, pois era o melhor que sabia fazer.

Pôs-se a observar o restante da sala, os olhos fugindo como podiam da bela figura. Claro, o lugar encontrava-se apinhado de outras moças de beleza equiparável ou até superior à dela, que andavam de um lado a outro, gargalhando e fazendo gracejos para os cavalheiros ao seu redor. Riu-se em silêncio da mordaz ironia do Destino, que, dentre tantas senhoritas alegres e extrovertidas, foi escolher justamente aquela soturna e entediada demoiselle para seu par.

Conferiu mais uma vez o bulbo vermelho acima da porta; flamejava sem qualquer consideração por sua ansiedade. Apertou as próprias mãos, já excessivamente suadas, e pensou em tentar iniciar uma conversa amena com a companheira. Atreveu-se a contemplá-la, enquanto ela sugava placidamente o cigarro barato. Recebeu um levantar de sobrancelha e um sorriso, gestos pequenos que se por um lado o animavam por outro deixavam-no ainda mais paralisado. Ponderou se ainda estava em tempo de fugir, mas desistiu; recusava-se a admitir que ainda lhe faltassem os brios de homem qualificado.

A luz rubra continuava a brilhar alegremente enquanto ele corria os olhos pelo recinto ainda mais uma vez. Reparou como os outros rapazes travavam despreocupados colóquios com as garotas, alguns mesmos já ensaiando o que pretendiam apresentar a portas fechadas. Decidiu que aquela era a atitute que também deveria tomar, adiantar-se a conhecer sua misteriosa parceira de forma a aproveitar ao máximo o pouco tempo que lhes seria permitido (mas afinal de contas, não parecia que aquele outro casal estava há eras protegido pela iluminação cor-de-sangue?). Voltou-se para ela com a bravura renovada: faltaram-lhe as palavras. O cérebro absolutamente em branco.

Secou o suor da testa com as costas da mão; a moça, ele já notara, escondia um sorrisinho sarcástico por trás da nicotina. Pois justo então, no ápice de sua angústia, a cretina da lâmpada finalmente se apagara, e os dois enclausurados abriram caminho entre os demais - ele radiante, ela um tanto desgostosa.

Sobressaltou-se ao ouvir novamente a voz rouca e charmosa, depois de horas (ou teriam sido apenas alguns minutos?) de espera, dizendo-lhe "Vamos?" num sussurro pouco interessado. Ela descruzou as pernas, esmagou a guimba de cigarro com a ponta da sandália e se levantou; já de pé, estendeu-lhe a mão como o bom cavalheiro que ele era deveria ter feito. Pois foi então, olhando para ela, que ele se convenceu de que tudo daria certo - as falas que ele repetira milhões de vezes para si mesmo não serviriam de nada, o que importava é que ambos, ele e ela, conheciam bem demais os papéis que ali representavam, e no fim das contas aquela tão nobre arte lhe corria como sangue pelas veias; aquilo era por ele, para ele, seria ele mesmo e que o resto se danasse. Apertou a mão estendida e praticamente arrastou a moça, a passos rápidos, para o retângulo de luz amarela que os holofotes faziam surgir no vão da pesada porta de feltro cinza. Antes que se fizesse ouvir o grito de "gravando", os dois se fecharam para a balbúrdia do lado de fora, e a luz vermelha mais uma vez se acendeu.

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