19.11.05

Libertas Quae Sera Tamen

Acordou sem sobressaltos no meio da noite, ouvindo a neta mais velha ressonar baixo na esteira ao lado. Com o silêncio que já lhe era característico, ergueu-se; alisou a frente das vestes, ainda que consciente de que ninguém notaria se estivessem amarrotadas. Abriu uma nesga de porta e saiu, pé ante pé.

Caminhou pela imponente construção a passos lentos, porém seguros. A fraca luminosidade noturna não lhe era um empecilho: conhecia o caminho há setenta e cinco anos. Deteve-se diante do cômodo do senhor, que tossira. Melhor que não a vissem circulando àquela hora. Não ouvindo mais qualquer barulho, prosseguiu.

Subiu a escadaria em espiral, forçando-se a parar a cada tantos degraus - puxava o ar gelado profundamente, preenchendo os pulmões debilitados com aquele aroma de pedras e tempo. O mesmo aroma sutil que por tantos anos as mulheres de seu clã sentiram, sua mãe, sua avó, sua bisavó, a bisavó desta, voltando mais e mais até os primeiros camponeses que habitaram aquelas terras. Sim, as tradições eram implacáveis.

Chegou finalmente ao topo, sentindo escorregar o pé no piso coalhado de branco do diminuto recinto. As mãos magras buscaram o gradeado da gaiola mais próxima, em busca de equilíbrio. As pombas acordaram, mas - talvez reconhecendo a mulher - não fizeram barulho maior que um leve ruflar de asas.

Sua favorita, a branca com manchas pretas no dorso da cabeça, veio cutucar-lhe o dedo amistosamente. A velha sorriu, reconhecendo o carinho. Olhando ao redor, notou que tinha a atenção de todas.

Tirou o pino enfeitado que prendia o coque no topo da cabeça, deixando cair pelas costas a seda longa e alva dos cabelos finos. Com dedos trêmulos, guardou o adorno por entre as dobras das roupas, tocando-o por cima do tecido. Lembranças...

As pombas, todas, ergueram a cabeça quando ouviram a vozinha pequena entoar os primeiros versos de uma canção. Decerto as aves não entendiam as palavras, mas talvez fossem capazes de sentir seu significado na linha melódica - doce, singela e triste como a vida.

Buscou a um canto as chaves, únicas, às quais apenas ela tinha acesso. Seguia com a música, aproximando-se das grades, as pombas atentas aos seus gestos limitados.

Uma a uma, abriu as portinholas do pombal, escancarando as janelas para a escuridão. Os pássaros seguiram, num caos incompreensivelmente matemático, através daqueles portais para o mundo exterior. A mulher manteve-se de pé em meio à revoada sem jamais falhar uma única nota de sua canção de amor, observando o vôo anárquico e confuso daqueles animais; mantidos em cativeiro desde o ovo, batiam asas a esmo, sem a mais remota noção de qual seria seu destino. Voavam, apenas, absolutamente libertos.

Foram-se todos. Ela, agora solitária, sussurrava as últimas palavras com lágrimas nos olhos. Mas sorria. Com dificuldade, galgou o parapeito da janela e, braços plenamente abertos, entregou-se à brisa da madrugada.

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