23.11.05

Lamentos do morador do Maracanã

É fácil identificar um morador do Maracanã: basta chamá-lo para uma visita num fim de semana à tarde. Depois de algumas horas, quando a conversa começar a morrer, o morador do Maracanã lançará mão de uma de suas frases essenciais: "está ameaçando chuva, melhor eu voltar antes que a rua encha" ou "acho melhor eu ir embora agora, pra não pegar a saída do jogo".

Além de levar em conta o trânsito e a violência comuns a praticamente todos os bairros cariocas, o morador do Maracanã define sua agenda de acordo com o calendário das chuvas e o campeonato de futebol corrente. Afinal, considerando o nível de poluição dos rios da Tijuca, e a ineficiência dos bueiros e da rede de esgotos em geral, não é necessário um dilúvio para que a área vire um frondoso lago. No verão, período em que as chuvas costumam ser mais intensas, o morador do Maracanã fica em permanente estado de alerta; se vê um Cumulus Nimbus ameaçador no céu, corre para casa. Aliás, moradores do Maracanã dariam ótimos meteorologistas.

Mas a correnteza não é a única que pode levar embora o carro de um morador do Maracanã. Quando não é o rio Maracanã que transborda, temos o famoso estádio homônimo e seu público transbordando de entusiasmo. O Estádio Jornalista Mario Filho (em homenagem ao fundador do Jornal dos Sports), vulgo Maracanã, foi por muito tempo considerado o maior do mundo. O recorde oficial foi de 177.653 pagantes num FlaxFlu de 1963; mas estima-se que o número real já tenha alcançado a marca dos 200.000. Pense bem: duzentos mil torcedores - metade esfuziante pela vitória, metade sofrendo o amargor da derrota. De um lado, as provocações e humilhaçes, do outro a sede de vingança. Combinação explosiva.

É claro que nem todo torcedor de futebol é, necessariamente, uma versão tupiniquim de um hooligan. Não é difícil ver famílias inteiras - inclusive crianças de colo - indo ao Maracanã. Mas tente imaginar o que é ouvir, no fim do jogo, a horda passando bem embaixo de sua janela, bradando o nome do próprio time ou tecendo (a plenos pulmões) comentários pouco graciosos sobre a mãe e a sexualidade dos torcedores do time adversário. Nessas horas, o pobre morador do Maracanã se permite um mínimo de parcialidade no seu julgamento. Não é completamente injusto, visto que essa parcialidade é volta e meia respaldada pelas manchetes dos principais jornais do país - pancadaria, prisões e feridos não surpreendem mais quem vive na vizinhança do estádio.

Seria uma grande injustiça, aliás, transformar o futebol no único pesadelo maracanense. Afinal, o estádio do Maracanã e o Maracanãzinho também são utilizados em shows e eventos de grande porte, como cultos religiosos. E embora um grupo de beatos ou fãs de Sandy & Junior não causem o mesmo efeito que uma turba de flamenguistas fanáticos, seus carros certamente o fazem - ocupando quilômetros de calçadas e transformando o trânsito da região num verdadeiro caos.

E como se não bastasse, o morador do Maracanã ainda sofre de crise de identidade: o Rio de Janeiro todo pensa que ele é tijucano - menos os próprios tijucanos, que repudiam a idéia como um evangélico repudia o capeta. Deve ser inveja.

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