12.7.07

Desiderata

Ela revira a fotografia entre os dedos, como uma criança que arranca as pétalas de uma rosa enquanto cantarola uma cantiga medieval – mas seu semblante é triste, ele sabe mesmo a essa distância. Ele a observa, guardião, não muito admirador; afinal, ela não é a primeira, tampouco a última, que ele vê sofrer. Ele aguarda paciente, seus olhos de céu serenos como uma nuvem semi-translúcida num sábado de manhã.

A foto flutua no abismo onde ela também se lança, e é quando ele abre o amplo par de asas brancas e mergulha através da atmosfera, quase preguiçoso. Seus braços desconhecem a noção humana de peso, dedos que dançam no ar com um salamaleque antes de abarcar a criatura. Os pequenos milagres diários como esse não chegam a ter qualquer graça especial, ele pensaria se não fosse o que é, mas para ele a Graça é uma só, diferente do conceito terreno de graça, conceito este que jamais seria concebível em sua opinião.

Jamais, pelo menos, até ele notar que a criatura o encarava com olhos fendados de âmbar.

Sorte – ou azar – já estarem no chão, pois ele a teria deixado cair sem um segundo pensamento; a ânsia mesmo de acabar com aquela existência é imensa, mas entra em conflito com o dogma da proteção aos desamparados. Duas forças iguais, fazer o bem e destruir o mal, e enquanto ele se debate com suas próprias leis, ela estica uma amostra de sorriso, ergue uma sobrancelha ironizando as estripulias do destino, e se vai embora deixando para trás o perfume indefectível de enxofre.

Ele segue por meses o rastro de seu cheiro, a espada num punho, o perdão no outro. As asas já perdiam as penas e ele sequer percebia, o tempo parecia mais frio ou mais quente, os pés doíam de andar. Tudo era estranho e tudo era novo, e ainda que fosse ruim, era bom, porque não era igual. A humanidade lhe entranhava dia após dia, e logo ele sentia fome, e logo vergonha. Entregam-lhe roupas numa catedral, servem-lhe um caldo ralo chamado "sopa" que incomoda a língua e amacia a garganta. Por um serviço, dão-lhe dinheiro; ele não compreende nem um, nem outro. Ninguém o questiona.

As palmas das mãos sangram da enxada, e o sofrimento é um conceito que ele entende, mas ele não pretende – não pode – se deter aqui por muito. Há que percorrer estradas e ruas (a pé; os tocos de osso das asas caíram com o tempo) até encontrá-la, seja lá por que ou para que for. Punição e salvação já se confundem e se embolam numa ânsia estranha, inominável. Ele chama isso de "missão", a quem quer que ouse perguntar.

Ele a encontra, enfim, num quarto perdido num motel perdido, lá onde os humanos não se distinguem dos anjos, dos demônios ou de qualquer outra coisa. Ela lhe sorri novamente como quem já o esperasse, e disso ele não duvida; volta-se para o corredor estreito com um meneio dos cabelos negros e deixa que ele siga o movimento de seus quadris até uma das portas (qual, não faria diferença).

É ali, entre os lençóis de algodão vagabundo de uma cama pouco iluminada que ele então cai em definitivo, cada vez mais fundo, cada vez mais desesperado, até que o último grunhido em uníssono desfigure a ambos. Ele é o pecado, agora, no abandono despido que observa o teto e espera que o arrependimento chegue – e ele nunca chega, e isso é que é o pior.

Ele nem sabe o que é um cigarro, mas quer acender um. Sentir a chama de nicotina devorando seus pulmões feito quimera e pôr tudo pra fora num anelzinho de nuvem semi-translúcida.

No alto do maior edifício da cidade é onde ele se encontra agora, olhando com curiosidade para a fotografia que ela deixou sobre o criado-mudo daquele quarto de motel. Atrás da foto ela escreveu "Segue-me e eu te salvarei", na língua que ele já não se permite falar. Não há sofrimento algum quando ele entrega o retângulo de papel à brisa e deixa o corpo pender para o infinito; atrás de si, ele sabe que está sendo observado por serenos olhos de céu.

2 comentários:

Rodrigo disse...

Mais um belo texto. Enquanto lia, imaginava como ele cairia bem num dos quadrinhos do Neil Gaiman, provavelmente num Sandman, ou talvez mesmo em um do Alan Moore.

Mesmo para os parâmetros de uma estudante de Comunicação, você tem muito talento. Claro, é o tipo de coisa que pessoas realmente dotadas ouvem a vida inteira e até se acostumam, mas ainda assim precisam ser ditas. Espero que o conserve e cultive e, em meio a "leads", "pirâmides invertidas" e a correria de sempre, consiga apurá-lo ainda mais. Instigar e conduzir os outros pelos caminhos da própria imaginação é um dom não apenas bonito, mas poderoso também, e merece ser usado. Afinal, como dizia o grande sábio ficcional Ben Parker, "Grandes poderes exigem grandes responsabilidades".

Sei que não responde comentários (aliás, por que há tão poucos em um blog tão interessante?), mas deixo aqui minhas congratulações mais uma vez.

Um abraço,
R.

Rodrigo Pereira disse...

Sem muita firúla... Muito bom. Adorei os seus textos... Posso linkar??