30.10.05

Velório

Então você também veio me dar um último adeus. Não chego a ficar surpreso (nem poderia), você não foi a primeira. Certamente passou pelos outros ao chegar aqui, não? Os tolos. Os covardes. Vieram todos - mas nenhum foi forte o suficiente para assistir até o fim. Nenhum teve a coragem necessária para se aproximar do caixão e carregar o peso dos meus pecados.

Apenas você, com seus olhos vítreos, permanece de pé.

Tive uma imensa vontade de gargalhar, diante das caras daquela gente. Alguns me olhavam como se vissem um ser fantástico, uma aberração: um homem com quatro pernas (mas se as tivesse, seria capaz de fugir no momento certo). Outros, confiantes da justiça e da certeza divina, acalmavam os incrédulos com um ridículo muxoxo de insatisfação, claramente indispostos por estarem aqui. (Temiam o vivo, continuam temendo o morto.) Ah, se você ouvisse o que eles diziam entre si! Deliciavam-se relembrando os eventos decisivos de minha última noite, choramingando sempre; consolavam uns aos outros, nunca a mim - logo eu, quem mais precisava de consolo numa hora dessas. Queria poder acabar com aquele lamento patético, mas aparentemente já comecei a pagar pelos meus crimes.

Afinal, agora aí está você, me encarando com este olhar de... raiva?

O cerimonial é simples, como pode ver; eu não merecia mais. Não há velas na escuridão, apenas a luz vinda de uma fresta a qual alguns tiveram a ousadia de chamar de janela (luz, filtrada pela poeira, caindo sobre seu rosto como um véu). Não me vestiram com bons panos, mal cobriram minhas feridas; apenas me estenderam nesta madeira encardida e desalmada. A única decoração desta humilhante capela é a marca suja de onde já houve um crucifixo na parede. Sequer uma pétala de rosa para disfarçar este odor putrefato!

Você não se conforma. Você é a única que não se conforma.

E eu sei bem - conheço você - que pouco adiantaria repetir a ladainha que os outros cantaram: que era chegada minha hora, que já se preparavam para isso. Que esta seria minha única forma de redenção. (E quem quer redenção?) Sei bem que você mal pode deter a pergunta que insiste em forçar caminho por entre seus dentes cerrados. "Por quê?", você parece prestes a gritar, e sabe melhor do que eu que seria incapaz de responder.

Me olha como se a culpa fosse somente minha. E o pior, eu não posso negar. Estou paralisado, preso no tempo e no espaço, imóvel; meu olhar a atravessa, minhas sobrancelhas não se podem mais franzir, meus braços enrijecidos são incapazes de sacudi-la deste torpor desesperado. Sei que a qualquer momento você também, como eles, vai virar as costas e me abandonar, sem que eu ao menos possa ouvir sua voz uma última vez, e não há nada que eu possa fazer para impedir - Deus, por que me detendes?!

Agora é tarde demais para rezar.

Você enfim desvia os olhos do cadáver. Já posso ouvir as chaves do santo homem batendo nas grades conforme ele avança pelo corredor. Agora eu, o morto, queria ser capaz de chorar - talvez assim você permanecesse ao meu lado. Para sempre. Mas você, diferente de mim, merece viver. Você me lança um último olhar, e para minha surpresa (minha desgraça) não vejo raiva, mas pena. Pena pelo que fomos, pelo que poderíamos ter sido se eu não tivesse estragado tudo; eis o momento em que eu finalmente me arrependo, como você tanto queria.

Minha única bênção é este fiapo de voz - que, antes que o som dos seus passos sele em definitivo a tampa de meu jazigo, me permite desejar-lhe num sussurro: descanse em paz.

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