8.4.03

Esse cara � o m�ximo.


Afiando o c�lamo

Afiar o c�lamo ou a ponta da haste da pena de ganso com que escreveria deve ter ajudado muito escritor a pensar na primeira frase. N�o fazemos outra coisa sen�o repetir este ritual de prepara��o, ou protela��o, da primeira frase, dando uma aten��o neur�tica aos nossos instrumentos. H� os que apontam todos os seus l�pis antes de come�ar a escrever, mesmo que depois escrevam a tinta. Os que transformam o correto enchimento de uma caneta-tinteiro (lembra caneta-tinteiro?) numa prova��o lit�rgica, para merecerem a inspira��o. Outros arrumam e rearrumam sua mesa de trabalho, numa esp�cie de oferenda aos deuses da simetria para que eles retribuam organizando seus pensamentos. Por uma boa primeira frase faz-se tudo, e sei de gente que s� escreve depois de um banho purificador, ou depois de passar meia hora atirando uma bola contra uma parede, ou de encher folhas e folhas com arabescos. (Dizem que aproveitaram tudo do Profeta: seus textos no Cor�o e seus rabiscos na decora��o dos templos.) Mas nada se compara ao lento desbastamento de um c�lamo, para pensar na primeira frase. Deve ser por isso que antigamente escreviam tanto, e t�o melhor: quando acabavam de afiar as penas com capricho todo o livro j� estava pensado e pronto, s� bastava bot�-lo no papel. E como est� provado que antigamente o tempo passava mais devagar, tudo se explica, ou tudo nos explica.

N�o existe equivalente a afiar o c�lamo para quem escreve num computador - salvo desmontar e remontar o aparelho, o que nenhum escritor sabe fazer. Ficamos reduzidos a manobras diversionistas: qualquer coisa para n�o enfrentar a primeira frase. Gostei de saber que o Chico Buarque tamb�m fica jogando paci�ncia em vez de trabalhar. Nossa desculpa � que n�o estamos jogando, estamos distraindo a nossa aten��o enquanto pensamos. Para evitar a primeira frase tenho me concentrado nos �cones do computador e agora mesmo - toda esta cr�nica, como j� se percebeu, � um pretexto para n�o escrev�-Ia - me dei conta de que o s�mbolo para tempo no computador � uma ampulheta. N�o a face de um rel�gio ou um quartzo pulsante, uma ampulheta! Quantas dessas crian�as que j� nascem com um notebook embaixo do bra�o sabem o que � uma ampulheta? E no entanto ali est� ela, a �nica maneira que o computador encontrou de nos dizer para esperar um pouquinho. Um anacronismo desconcertante. Eram ampulhetas que os escritores de antigamente tinham ao seu lado, para lembr�-los dos prazos de entrega enquanto afiavam o c�lamo. No fundo, mudou tudo no nosso of�cio menos a ang�stia.

Pronto. Agora s� me falta uma boa �ltima frase.

Verissimo. O Globo, 09/02/01.

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